Rudyard Kipling Kim (1901) (trad. Monteiro Lobato)
"- Se não fosse a minha paixão, nenhum mal teria havido - observou o lama. - Que mal houve? O Mestre salvou os dois Sahibs de uma morte cem vezes justa. - A lição não está bem aprendida, chela - advertiu o lama, deitando-se e cobrindo-se enquanto Kim prosseguia no seu trabalho. - A pancada não passou sombra sobre sombra. Foi um mal que despertou em mim, o mal, a cólera, a raiva e o desejo de pagar o mal com o mal. O mal mexeu no meu sangue, revolveu o meu estômago e zumbiu nos meus ouvidos. Enquanto falava, o velho recebia cerimoniosamente a xícara de chá quente das mãos de Kim. - Se eu me tivesse mostrado sem paixão - continuou -, o mal da pancada só me teria causado mal ao corpo, uma contusão, um ferimento, coisas ilusórias. Mas o meu espírito não estava abstracto, pois por um momento desejou que o coolie matasse o ofensor. Lutando contra esse desejo, a minha alma sofreu mais que com mil pancadas. Antes que eu repetisse as Bençãos (referindo-se às Beatitudes Budistas) a calma não me voltou. Mas o mal que aquele momento de descuido colocou em mim está perto do termo. A Roda é justa e não se desvia uma linha. Aprendamos a lição, chela. - A coisa é muito elevada para mim - murmurou o rapaz. - Estou ainda abalado, mas contente do que fiz àquele homem. - Senti isso, quando repousei com a cabeça no colo do meu chela, depois do incidente. Os meus sonhos foram agitados: o mal em acção numa alma passa para outra. Por outro lado - disse apalpando as contas do rosário - granjeei mérito com a salvação da duas vidas - as dos homens que me ofenderam. Agora preciso ver dentro da Causa das Coisas. O bote da minha alma flutua incerto. - Durma e fortaleça-se, isso é a verdade. - Medito. A necessidade de meditação é maior do que o meu chela supõe." |
2014-06-29
Kim (p.259-260)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário