Haruki Murakami The Wind-Up Bird Chronicle (ねじまき鳥クロニクル Nejimakitori Kuronikuru) (1994) (trad. Maria João Lourenço)
"- Podem baixar as luzes na sala, por favor? - pediu o homem. Um empregado diminuiu a intensidade da luz. - Mais um bocadinho, pode ser?
Quando a sala ficou quase às escuras, começámos a distinguir nitidamente a chama da vela. Com o copo de uísque na mão, para o aquecer, eu não tirava os olhos dele. - Como devem estar fartos de saber, o homem experimenta vários tipos de dor ao longo da sua existência - disse ele numa voz baixa mas audível. - Até hoje, e pela parte que me toca, já senti na pele a dor nas suas mais diversas formas e imagino que o mesmo terá acontecido convosco. Mas estou certo de que, na maior parte dos casos, terá sido muito difícil traduzir por palavras essa mesma dor aos outros. Por isso é que as pessoas dizem que só quem passa por isso é que sabe. Mas será realmente assim? Eu sou dos que não acreditam nisso. Por exemplo, se vemos alguém em sofrimento à frente dos nossos olhos, também nós conseguimos sentir a sua dor e partilhar do seu sofrimento como se fosse nosso. É a chamada força da empatia. Faço-me entender? - Fez uma pausa e voltou a varrer a sala com o olhar. - Se as pessoas cantam, é porque querem ter a possibilidade de despertar os sentimentos dos outros, porque querem sair da sua pequena casca e partilhar com os outros as dores e as alegrias. Mas isso, como seria de esperar, não é tarefa fácil. Por isso esta noite, gostaria de fazer uma pequena experiência que vos permitirá criar, por assim dizer, uma certa empatia física. Luzes, por favor. Estava toda a gente imóvel, de olhos postos no palco, contendo a respiração. No meio do silêncio, o homem olhava no vazio com o objectivo de fazer uma pausa, ou então de se concentrar mentalmente. Em seguida, sem dizer palavra, pôs a palma da mão esquerda sobre a vela e começou a aproximá-la da chama pouco a pouco. Entre o público alguém soltou um som que tanto podia ser um suspiro como um gemido. Podia ver-se a ponta da chama a queimar a palma da mão. O crepitar de carne queimada era quase perceptível. Uma mulher deixou escapar um grito sufocado. Os outros espectadores observavam a cena, horrorizados. O homem, com a cara brutalmente contraída, suportava a dor. Mas que diabo quer isto dizer, lembro-me de ter pensado, que pretende ele provar com semelhante estupidez? Notei que a minha boca começava a ficar seca. Após ficar assim, naquela posição, durante cinco ou seis segundos, o homem afastou devagarinho a palma da chama e pousou o prato com a vela no chão. Depois cruzou as duas mãos, apertando a palma direita contra a esquerda. - Como acabaram de ver, minhas senhoras e meus senhores, a dor pode consumir literalmente o corpo de um homem - disse. A sua voz mantinha o mesmo tom de antes: baixa, audível e serena. Todos os sinais de sofrimentos tinham desaparecido do seu rosto, que afivelava mesmo um ligeiro sorriso- E a dor que eu devia estar a experimentar, todos puderam senti-la como se fosse vossa. É esse o poder da empatia." |
2017-03-20
Crónica do Pássaro de Corda (p.255-256)
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