António Gedeão Obra Poética [Máquina de Fogo] (1961-2001)
"Saudades da terra
Uns olhos que me olharam com demora, não sei se por amor se caridade, fizeram-me pensar na morte, e na saudade que eu sentiria se morresse agora. E pensei que da vida não teria nem saudade nem pena de a perder, mas que em meus olhos mortos guardaria certas imagens do que pude ver. Gostei muito da luz. Gostei de vê-la de todas as maneiras, da luz do pirilampo à fria luz da estrela, do fogo dos incêndios à chama das fogueiras. Gostei muito de a ver quando cintila na face de um cristal, quando trespassa, em lâmina tranquila, a poeirenta névoa de um pinhal, quando salta, nas águas, em contorções de cobra, desfeita em pedrarias de lapidado ceptro, quando incide num prisma e se desdobra nas sete cores do espectro. Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria quando galga lambendo o dorso dos navios, quando afaga em blandícias de cândida luxúria a pele morna da areia toda eriçada de calafrios. E também gostei muito do Jardim da Estrela com os velhos sentados nos bancos ao sol e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho e a adormecê-la e as meninas a correrem atrás das pombas e os meninos a jogarem
[ao futebol.
À porta do Jardim, no inverno, ao entardecer, à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas, gostei muito de ver erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas. Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados que se julgam sózinhos no meio de toda a gente, e se amam com os dedos aflitos, entrecruzados, de olhos postos nos olhos, angustiadamente. E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados, e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras
[grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões
[pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras.Mas... saudade, saudade propriamente, essa tenaz que aperta o coração e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não. Saudade, se a tivesse, só de Aquela que nas flores se anunciou, se uma saudade alguém pudesse tê-la do que não se passou. De Aquela que morreu antes de eu ter nascido, ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez ande nalgum atalho deste mundo grande para lá dos confins do horizonte perdido. Triste de quem não tem, na hora que se esfuma, saudades de ninguém nem de coisa nenhuma." |
2015-06-29
Obra Poética (p.107-108)
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