António Gedeão Obra Poética [Teatro do Mundo] (1958-2001)
"Cavalinho, cavalinho
Corria o meu cavalinho quando acordei de repente. Mas que lindo cavalinho! Tinha a brancura do linho, e um olho muito verdinho, fluorescente. Corria, corria, corria, corria, corria e espinoteava, galopava e relinchava numa autêntica euforia. Corria, corria, corria, corria, e de repente estacava, e novamente corria, corria e espinoteava numa doida correria. E cada vez que corria, e em cada volta que dava, sua crina se agitava, se espargia e sacudia num jeito que se diria ser assim que lhe agradava, ter prazer no que fazia. E o cavalinho corria, corria sempre, corria, na senda que rescendia na manhã do laranjal. O solo fofo gemia. Brandos, os ramos teciam acenos de ritual. Tenros, os pomos tremiam no compasso musical. Sobre a garupa de neve, abraçado ao seu pescoço, eu era uma pena leve soprada com alvoroço. Se ele corria, eu corria, se ele saltava, eu saltava, tudo quanto ele fazia, todas as voltas que dava, tudo, tudo eu repetia, na mesma doida euforia que cansava e não cansava. Mas que lindo cavalinho! A sua crina macia, loira de barbas de milho, deixava um estendal de brilho na senda que percorria. Apetecia mexer-lhe, sentir-lhe o fofo e o calor daquela crina macia que agitava e sacudia como um doirado vapor. Mas que lindo cavalinho! Meu amor! Não tinha sela nem brida, nem cabeçada num freio, nem qualquer espécie de arreio que lhe ofendesse a nudez. Era um ser vivo total, num emaranhado de vida num gozo todo animal: crina de loiro brunida, corpo de branco cendal, cascos de ágata polida, ferraduras de cristal. Mas que lindo cavalinho! Senti-lhe o bafo cheiroso, o tumulto harmonioso do trote das nédias ancas. Chamei-lhe os mais lindos nomes: flor de nata, lua cheia, floco de espuma na areia, poço de camélias brancas. Beijei-lhe o focinho ardente, mordisquei-lhe o corpo nu. (Que eu sabia, intimamente, que o cavalinho eras tu.)" |
2015-06-20
Obra Poética (p.60-61)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário