António Gedeão Obra Poética [Teatro do Mundo] (1958-2001)
"Poema do homem só
Sós, irremediavelmente sós, como um astro perdido que arrefece. Todos passam por nós e ninguém nos conhece. Os que passam e os que ficam. Todos se desconhecem. Os astros não se explicam: arrefecem. Nesta envolvente solidão compacta, quer se grite ou não se grite, nenhum dar-se de dentro se refracta, nenhum ser nós se transmite. Quem sente o meu sentimento sou eu só, e mais ninguém. Quem sofre o meu sofrimento sou eu só, e mais ninguém. Quem estremece este meu estremecimento sou eu só, e mais ninguém. Dão-se os lábios, dão-se os braços, dão-se os olhos, dão-se os dedos, bocetas de mil segredos dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, dão-se os dias, dão-se aflitivas esmolas, abrem-se e dão-se as corolas breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, como uma braçada rota dá-se tudo e nada fica. Mas este íntimo secreto que no silêncio concentro, este oferecer-se de dentro num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce, virgem de mal e de bem, este dar-se, este entregar-se, descobrir-se e desflorar-se, é nosso, de mais ninguém." |
2015-06-17
Obra Poética (p.46)
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