2015-01-31

Um, Nenhum e Cem Mil (p.100-101)

Luigi Pirandello
Uno, Nessuno e Centomila (1926)
(trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo)


"No entanto, eu tinha horror aos olhos que me olhavam, risonhos e seguros; tinha horror àquelas mãos que me tocavam, na certeza de que eu era como os seus olhos me viam; tinha horror a todo aquele corpo que me pesava nos joelhos, confiante no abandono que me fazia de si, sem a mais remota suspeita de que não se dava realmente a mim e que eu, apertando-a nos braços, não apertava naquele corpo uma mulher que me pertencia totalmente, mas uma estranha a quem não podia dizer de modo algum como era porque, para mim, ela era justamente como eu a via e tocava: esta, assim com estes cabelos e estes olhos e esta boca, como no fogo do meu amor lha beijava; ao passo que para a outra, a minha, no seu fogo tão diferente do meu e incomensuravelmente longínquo, dado que, para ela, tudo, sexo, natureza, imagem e sentido das coisas, pensamentos e afectos que lhe formavam o espírito, recordações, gostos e até o contacto da minha áspera cara com a sua face delicada, tudo, tudo era diferente. Dois estranhos, assim unidos - horror! -, estranhos não só um para o outro, mas cada qual para si mesmo, naquele corpo que o outro abraçava.
Vocês nunca experimentaram este horror, eu sei; porque estreitaram na vossa mulher, sempre e apenas o vosso mundo, sem se aperceberem de que ela abraça em vocês o seu mundo, que é um outro, impenetrável. E contudo, para sentirem este horror, bastaria que pensassem um momento, sei lá!, numa coisa sem importância, uma coisa que vos agrade e não lhe agrade a ela: uma cor, um sabor, uma opinião, algo que não vos fizesse pensar superficialmente apenas numa diferença de gostos, sensações e opiniões; os olhos dela, enquanto vocês a olham, não vêem em nós, e como os vossos, as coisas tal como vocês as vêem, e o mundo, a vida, a realidade das coisas como são para vocês, como vocês as tocam, não são para ela, que vê e toca uma realidade diferente nas mesmas coisas e em vocês mesmos e nela, sem vos poder dizer como, para ela, é essa realidade, porque para ela é aquela e não pode imaginar que possa ser outra para vocês."

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