Marguerite Yourcenar L'Oeuvre au Noir (1968) (trad. António Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes)
"(...) o Sol erguia-se insensivelmente, diminuindo aquela sombra humana sobre a areia. Possuído de uma reverente ideia que lhe teria valido a morte em qualquer praça pública de Maomet ou de Cristo, pensou que os símbolos mais adequados do conjectural Bem Supremo eram estes, absurdamente tidos em conta dos mais idólatras; e que aquele globo incandescente era o Único Deus visível para as criaturas, que, sem ele, pereceriam. (...) Neste mundo sem fantasmas, até a ferocidade era pura: o peixe que se remexia na água não passaria, dentro em pouco, de uma presa a sangrar no bico da ave pescadora, sem que fosse preciso à ave dar maus pretextos para a sua fome. A raposa e a lebre, a esperteza e o medo, habitavam a duna em que ele dormia, sem o caçador jamais se interrogar sobre leis promulgadas outrora por alguma raposa manhosa, ou recebidos de algum deus-raposa; a vítima também não via nisso o castigo dos seus crimes e, ao morrer, não protestava fidelidade ao seu príncipe. A violência da vaga era isenta de cólera. A morte, que entre os homens é coisa obscena, era limpa, no meio desta solidão. (...)"
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2015-03-11
A Obra ao Negro (p.200-201)
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