Will Eisner A Contract with God and other Tenement Stories (1978) (trad. Paulo Furtado)
Começa com chave de ouro a nova colecção de banda desenhada, ou antes, de novelas gráficas, que o Público agora iniciou em parceria com a Levoir...
Precisamente com aquela que é considerada a primeira graphic novel, assim denominada pelo seu autor, Will Eisner. A minha primeira impressão foi que se leu bem e depressa - para a dimensão do livro -, em resultado de muitas vinhetas ocuparem a totalidade da prancha, mais depressa do que o tempo que demorei a escrever esta resenha... São quatro histórias centradas em dramas humanos, de personagens fintadas pelo destino, a tocar o absurdo, num registo em que os desenhos contam a história tanto como o texto. |
Um Contrato com Deus
"Somente as lágrimas de dez mil anjos poderiam causar tamanho dilúvio!
Pensando bem, talvez tenha sido isso mesmo o que aconteceu..." "... afinal, foi naquele dia que Frimme Hersh enterrou a filha, Rachele." A história que dá título a esta colectânea, conta-nos a vida de Frimme Hersh, desde cedo considerado um escolhido de Deus, e das expectativas e desilusões que resultam dessa convicção. Fala-nos da relação do homem com Deus, de desgosto, de raiva, da perda de valores, do vazio do sucesso e da procura de redenção. Do desgosto pela perda de um ente querido, traduzido numa dissolução da personagem na chuva, passando pelo forte contraste do "diálogo" em que quebra o seu contrato com Deus, ou as molduras das janelas para acentuar o isolamento em que caiu apesar do seu sucesso financeiro e da companheira que arranjou, até ao desmoronar físico que antecede a sua morte, são várias as situações que têm tradução gráfica, e não apenas ilustrativa. Hoje poderá parecer uma abordagem batida, já vista, mas imagino que à data em que foi concebida fosse algo de diferente e novo. |
O Cantor de Rua
Na segunda história seguimos um dia na vida de um homem que procura ganhar a vida a cantar na rua, sujeito à generosidade dos habitantes dos prédios que dão para as vielas que percorre, e do seu cruzamento efémero com uma estrela decadente que vê nele uma oportunidade de realizar o seu sonho de voltar à ribalta.
Uma reflexão sobre os labirintos da vida, das encruzilhadas que encontramos a cada dia que passa, de oportunidades perdidas, de sonhos por realizar, e de desencontros irremediáveis. As cenas de rua são desenhadas de modo a acentuar o seu carácter claustrofóbico e labiríntico, com cenários mais carregados, enquanto as interiores são mais leves, quase desprovidas de adereços, onde a relação entre as personagens, mesmo que distante ou de isolamento, é o que importa revelar, podendo ainda destacar-se a relevância das expressões em momentos chave, quase caricaturais, para evidenciar os sentimentos daquelas. Dá-nos ainda, mesmo que superficial, uma visão do autor sobre a frustração e miséria na origem do alcoolismo e, daí para, a violência doméstica. Ao nível do desenho, destaco a prancha com o plano picado sobre a viela, de grande efeito visual e dramático. |
O Zelador
A história que se segue faz-nos reflectir sobre preconceitos, inocência, perversidade, culpa e remorso (ou da falta dele).
Conta-nos o último dia do zelador (porteiro) e os acontecimentos que levam ao seu suicídio: partindo de uma reclamação por falta de água quente e uma simples operação de manutenção, que o leva a ser visitado pela sobrinha da reclamante nos seus aposentos, com as suspeitas de pedofilia que se lhe seguem, até às fatais consequências... O autor começa por nos apresentar a personagem de aspecto desagradável e trato antipático, com desenhos em que é mostrado como ameaçador, para depois causar mais impacto a reviravolta na nossa percepção dessa ameaça, em imagens em que a representação da personagem alterna entre o vulnerável e o injustiçado... Destaque para os desenhos de caracterização da cave e dos aposentos do zelador, bem como, mais uma vez, dos pátios entre os prédios, que muito ajudam a caracterizar a personagem e os seus estados de alma. |
Cookalein
A última história é aquela que, a meu ver, mais explora as potencialidades gráficas da organização das pranchas, dando uma outra dimensão à teia de relações que se estabelece entre as várias personagens, de diferentes origens e com diferentes objectivos, que vão passar as suas férias ao campo...
Reflecte sobre ascensão social, ambição, relações humanas, por interesse, frustradas e também sobre o amor. Algumas famílias e rapazes e raparigas vão ficar instalados para passar o Verão em alojamentos à medida das suas bolsas ou das suas ambições, e procuram, nesse curto período de férias, dar novo rumo às suas vidas, recorrendo mesmo ao logro e mentira para atingir os seus objectivos, saindo uns frustrados, outros conformados, mas querendo aparentar a ilusão do sucesso da sua aventura. Algumas pranchas evidenciam por plano e contra-plano, ou por contraste claro escuro, ou por justaposição de vinhetas, a teia de relações que se estabelece e o contraste de estratos sociais, os caminhos cruzados e o descruzar de relações em face da revelação de equívocos, até ao regresso ao labirinto citadino. |
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