2015-03-21

A Obra ao Negro (p.260-261)

Marguerite Yourcenar
L'Oeuvre au Noir (1968)
(trad. António Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes)


"(...) Lançou um olhar ao cobertor já escuro de sangue. Compreendia agora a noção grosseira segundo a qual o sangue e a alma são uma e a mesma coisa, pois que alma e sangue se esvaem ao mesmo tempo. Esses velhos erros continham uma singela verdade. Pensou, com algo parecido com um sorriso, que era uma boa altura para completar as suas velhas experiências sobre a sístole e a diástole do coração. Mas os conhecimentos adquiridos não contavam doravante para ele mais do que a lembrança dos acontecimentos ou das criaturas que havia encontrado na vida; estava ainda ligado, por mais alguns momentos, ao delgado fio da pessoa, mas a pessoa, deslastrada, já se não distinguia do ser. Ergueu-se, então, a custo, não porque fosse necessário, mas para provar a si próprio que ainda lhe era possível fazer esse movimento. Muitas vezes lhe acontecera abrir segunda vez uma porta, só para provar a si mesmo que a não tinha fechado para sempre, ou voltar-se novamente para uma pessoa de quem se despedira apenas para negar a finalidade de uma partida, demonstrando com isto a si mesmo a sua pequena liberdade de homem. Desta vez, realizara-se o irreversível."

Sem comentários: