Herberto Helder A Colher na Boca (1961)
"Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve no tempo mais antigo. Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer, sorrindo com ironia e doçura no fundo de um alto segredo que os restitui à lama. De doces mãos irreprimíveis. - Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas, as casas encontram seu inocente jeito de durar contra a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras. Digamos que descobrimos amoras, a corrente oculta do gosto, o entusiasmo do mundo. Descobrimos corpos de gente que se protege e sorve, e o silêncio admirável das fontes – pensamentos nas pedras de alguma coisa celeste como fogo exemplar. Digamos que dormimos nas casas, e vemos as musas um pouco inclinadas para nós como estreitas e erguidas flores tenebrosas, e temos memória e absorvente melancolia e atenção às portas sobre a extinção dos dias altos. Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos, espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos que não viram as torrentes infindáveis das rosas, ou as águas permanentes, ou um sinal de eternidade espalhado nos corações rápidos. - Que fizeram estes arquitectos destas casas, eles que [vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra, aqui outra, para que se faça uma ordem, uma duração, uma beleza contra a força divina? Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha. Alguém viera do mar. Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pó. Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos, inspirações. - Estas casas serão destruídas. Como um girassol, elaborado para a bebedeira, insistente no seu casamento solar, assim se esgotará cada casa, esbulhada de um fogo, vergando a demorada cabeça para os rios misteriosos da terra onde os próprios arquitectos se desfazem com suas mãos múltiplas, as caras ardendo nas velozes iluminações. Falemos de casas. É verão, outono, nome profuso entre as paisagens inclinadas Traziam o sal, os construtores da alma, comportavam em si restituidores deslumbramentos em presença da suspensão de animais e estrelas, imaginavam bem a pureza com homens e mulheres ao lado uns dos outros, sorrindo enigmaticamente, tocando uns nos outros – comovidos, difíceis, dadivosos, ardendo devagar. Só um instante em cada primavera se encontravam com o junquilho original, arrefeciam o resto do ano, eram breves os mestres da inspiração. - E as casas levantavam-se sobre as águas ao comprido do céu. Mas casas, arquitectos, encantadas trocas de carne doce e obsessiva - tudo isso está longe da canção que era preciso escrever. - E de tudo os espelhos são a invenção mais impura. Falemos de casas, da morte. Casas são rosas Para cheirar muito cedo, ou à noite, quando a esperança Nos abandona para sempre. Casas são rios diuturnos, nocturnos rios Celestes que fulguram lentamente Até uma baía fria – que talvez não exista, como uma secreta eternidade. Falemos de casas como quem fala da sua alma, Entre um incêndio, Junto ao modelo das searas, na aprendizagem da paciência de vê-las erguer e morrer com um pouco, um pouco de beleza." Herberto Hélder (1930/11/23 - 2015/03/23) |
2015-03-24
Falemos de Casas
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário