2015-03-20

A Obra ao Negro (p.258)

Marguerite Yourcenar
L'Oeuvre au Noir (1968)
(trad. António Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes)


"(...) Subitamente, deu-se uma revolução: cessou a calma, impelida pela angústia, como que por um tornado. Restos de imagens entrechocavam-se nessa tempestade, arrancadas, umas, ao auto-de-fé de Astorga, ocorrido trinta anos antes, outras aos recentes pormenores do suplício de Floriano, ou aos encontros fortuitos com os odiosos resíduos da justiça executiva, nas encruzilhadas dessas cidades por onde passara. Dir-se-ia que a notícia do que iria acontecer alcançara, de súbito, o entendimento do corpo, impregnando cada um dos sentidos com a sua quota-parte de horror: viu, sentiu, farejou, percebeu o que iriam ser, no dia seguinte, os incidentes da sua execução na praça do Mercado. A alma carnal, prudentemente alheada das deliberações da alma racional, sabia agora, de repente e no mais íntimo, tudo quanto Zenão lhe havia ocultado. Algo nele se quebrou como uma corda: secou-se-lhe a saliva; os pêlos do pulso e das costas da mão eriçaram-se; batia os dentes. Esta desordem, jamais experimentada em si mesmo, deixara-o mais admirado do que toda a sua restante desventura: apertando com as mãos as maxilas, respirando profundamente para refrear o coração, lá conseguiu reprimir essa espécie de motim do corpo. Era de mais: tornava-se necessário acabar, antes que os reveses da carne e da vontade o incapacitassem de dar remédio aos seus próprios males. Riscos até ali imprevistos e que ameaçavam impedir-lhe uma saída racional apresentaram-se em catadupa ao seu espírito de novo lúcido."

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