2015-07-22

D. Quixote de la Mancha (vol.I, p.131)

Miguel de Cervantes Saavedra
D. Quixote de la Mancha (1605)
(trad. Aquilino Ribeiro)


"- Este corpo, senhores, que estais a olhar com olhos enternecidos, foi depositário duma alma em que o céu tinha entesoirado infinita cópia das suas riquezas. E o invólucro terreno de Crisóstomo, singular no engenho, sem par na cortesia, extremo na gentileza, fénix na amizade, magnífico sem interesse, grave sem presunção, alegre sem baixeza, e finalmente primeiro em tudo o que é ser bom e sem segundo em tudo o que foi ser desditoso. Amou, foi aborrecido; adorou, foi desdenhado. Suplicou a uma fera; quis embrandecer um mármore; correu atrás do vento; deitou vozes ao deserto; serviu uma ingrata, e o pago que teve foi ser presa da morte a meio da carreira da vida. Mal empregado talento em querer imortalizar a pastora, que veio abreviar-lhe a existência, como demonstram sobremaneira esses papéis que estais vendo e ele me recomendou reduzir a cinzas assim que o seu corpo baixasse à sepultura!
- Permiti que vos observe, senhor - atalhou Vivaldo - que, se o fizésseis, maior fereza e desapego que o do seu autor seria o vosso para com ele. Não me parece justo nem acertado que se cumpram à risca disposições ditadas em hora de tresvario. Mal-avisado andaria Augusto César se deixasse cumprir as últimas vontades do divino Mantuano. Se não tendes outro remédio senão dar o corpo à terra, não queirais dar também os seus escritos ao esquecimento. Se assim o deixou preceituado, na qualidade de ressentido, não é bem que vos arvoreis em seu cego instrumento (...) Todos quantos aqui se juntaram conhecem a história dos amores e desespero do vosso amigo. Estamos também ao facto da amizade que lhe consagrastes desde sempre, bem como da causa da sua morte e dos seus desígnios finais. De todo este lamentável sucesso bem fácil é deduzir quão grande foi a crueldade de Marcela, o amor de Crisóstomo, a fé da vossa amizade e o fim desastrado que espera a todos aqueles que se lançam à rédea solta pela vereda que o amor cego lhes traça diante dos olhos. (...)"

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