Miguel de Cervantes Saavedra D. Quixote de la Mancha (1605) (trad. Aquilino Ribeiro)
"(...) Fez-me o Céu, ao que vós dizeis, formosa, de sorte que não está em vosso poder resistir aos meus encantos. Pretendeis ainda que, em paga do amor que me mostrais, eu esteja obrigada a corresponder-vos com amor igual. Dou conta, com o pouco entendimento que Deus me deu, que tudo o que é belo é amável. O que não compreendo é que, pelo facto de ser amado, o que de facto é amado em virtude da sua beleza seja obrigado a amar quem o ama. Tanto mais que pode muito bem acontecer que seja disforme o enamorado em tais condições. Ora, sendo disforme motivo de enjoo, não fazia sentido dizer: gosto de ti porque és bonita, tu tens de corresponder-me inda que eu seja horrendo. Admitindo que se trate de pessoas dotadas de dotes físicos iguais, tão-pouco é razão para que os sentimentos se correspondam, visto que nem todas as formosuras cativam, havendo algumas que deleitam os olhos sem tocarem o coração. E bem é que assim seja. Se todas as formosuras despertassem paixões e escravizassem, que confusão e desgarramento dos corações não iria pelo mundo, sem saber em quem fixar-se, pois que, sendo as belezas em número infinito, os desejos que inspiram seriam também infinitos. E não ouço dizer que o amor verdadeiro é indivisível, tem por sua natureza que ser voluntário e de modo algum forçado?! Se assim é, como tudo leva a crer, porque queríeis vós que o meu coração se rendesse à viva força e somente porque me declarastes que me quereis bem? Senão dizei-me: assim como o Céu me fez bonita, se me fizesse feia, seria justo que me queixasse de vós porque vos não apaixonáveis por mim? (...)"
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2015-07-23
D. Quixote de la Mancha (vol.I, p.138-139)
Temas:
1605,
amor,
atracção,
beleza,
desejo,
desprendimento,
integridade,
Livro,
Miguel de Cervantes
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