António Gedeão Obra Poética [Poemas Póstumos] (1983-2001)
"Poema da eterna presença
Estou, nesta noite cálida, deliciadamente estendido sobre a relva, de olhos postos no céu, e reparo, com alegria, que as dimensões do infinito não me perturbam. (O infinito! Essa incomensurável distância de meio metro que vai desde o meu cérebro aos dedos com que escrevo!) O que me perturba é que o todo possa caber na parte, que o tridimensional caiba no dimensional, e não o esgote. O que me perturba é que tudo caiba dentro de mim, de mim, pobre de mim, que sou parte do todo. E em mim continuaria a caber se me cortassem braços e pernas porque eu não sou braço nem sou perna. Se eu tivesse a memória das pedras que logo entram em queda assim que se largam no espaço sem que nunca nenhuma se tivesse esquecido de cair; se eu tivesse a memória da luz que mal começa, na sua origem, logo se propaga, sem que nenhuma se esquecesse de propagar; os meus olhos reviveriam os dinossáurios que caminharam sobre
[a Terra,
os meus ouvidos lembrar-se-iam dos rugidos dos oceanos que
[engoliram continentes,
a minha pele lembrar-se-ia da temperatura das geleiras que
[galgaram sobre a Terra.
Mas não esqueci tudo. Guardei a memória da treva, do medo espavorido do homem da caverna que me fazia gritar quando era menino e me apagavam a luz; guardei a memória da fome; da fome de todos os bichos de todas as eras, que me fez estender os lábios sôfregos para mamar quando cheguei
[ao mundo;
guardei a memória do amor, dessa segunda fome de todos os bichos de todas as eras, que me fez desejar a mulher do próximo e do distante; guardei a memória do infinito, daquele tempo sem tempo, origem de todos os tempos, em que assisti, disperso, fragmentado, pulverizado, à formação do Universo. Tudo se passou defronte de partes de mim. E aqui estou eu feito carne para o demonstrar, porque os átomos da minha carne não foram fabricados
[de propósito para mim.
Já cá estavam. Estão. E estarão." |
2015-07-07
Obra Poética (p.180-181)
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