Miguel de Cervantes Saavedra D. Quixote de la Mancha (1605) (trad. Aquilino Ribeiro)
"(...) a formosura na mulher honesta é como o lume entre grelhas ou a espada nua, não queimando aquele nem ferindo esta a quem lhes não toca. A honra e a virtude são ornamentos da alma, sem os quais o corpo não é verdadeiramente formoso embora o pareça exteriormente. Ora se a honestidade é uma das prendas que mais aformoseiam e adornam corpo e alma, porque a há-de perder a mulher que é amada pelos seus encantos, com objecto de corresponder aos anelos daquele que, para seu gozo apenas, procura por todas as formas e processos privá-la dessa virtude? Nasci livre e para poder desfrutar uma vida livre, escolhi a solidão dos campos. São a minha companhia as árvores destes montes; meus espelhos as águas claras dos ribeiros; e às árvores e aos ribeiros que faço confidentes dos meus segredos e das minhas veleidades de bonita. Sou fogo entre grelhas e espada fora de alcance. Aos que cativei com os olhos, desenganei com palavras. Se os desejos se alimentam com esperanças, não havendo dado nenhuma a Crisóstomo, de resto como a qualquer outro, bem se pode dizer que antes o matou a sua porfía que a minha frieza. Se se me objecta que eram bem-intencionados os seus pensamentos e que por isso estava na obrigação de corresponder-lhes, responderei que neste mesmo lugar, onde agora lhe fazem a cova, quando me tornou patente a lisura dos seus desígnios, rasgadamente lhe declarei que os meus não eram outros senão viver em perpétua solidão e que só a terra se gozaria dos despojos da minha formosura. Se, em despeito de semelhante aviso, ele se obstinou em navegar contra o vento, que admira que naufragasse em pleno pego do seu desatino? Se eu o andasse a entreter, seria falsa; se lhe desse satisfação, trairia as próprias bases do meu carácter. Porfiou, embora desenganado; desesperou sem que fosse aborrecido. Digam-se agora se me cabe alguma responsabilidade na sua desfortuna... Queixe-se o homem que de algum modo logrei; desespere-se, se lhe saíram fementidas as esperanças que por mim lhe fossem dadas; quem eu chamar, diga-o em voz alta; quem eu admitir, glorie-se. mas não me acuse de cruel nem de homicida aquele a quem não prometo nada, não iludo, não convido, nem admito. (...)"
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2015-07-24
D. Quixote de la Mancha (vol.I, p.139-140)
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