Miguel de Cervantes Saavedra D. Quixote de la Mancha (1605) (trad. Aquilino Ribeiro)
"- Os filhos são pedaços das entranhas de seus progenitores - respondeu D. Quixote. - Sejam bons, sejam maus, há-de-se-lhes querer como às almas, que são a nossa fonte de energia. Aos pais cumpre ensinar-lhes desde pequenos o caminho da virtude, da boa criação e dos costumes íntegros e penetrados da lei de Deus, para que, quando homens, sejam o bordão em seus provectos dias e glória da posteridade. Lá forçá-los a estudar esta ou aquela ciência, não o tenho por acertado, posto não haja inconveniente em procurar levá-los a bem. Quando não é forçoso queimar as pestanas para pane lucrando, sendo um felizardo o estudante que tem a herdar dos seus, a minha opinião é que se deixe cultivar aquela das ciências para que tenha inclinação. A poesia, embora seja menos útil que recreativa, não é daquelas que desacreditam a quem as pratica. A poesia, meu fidalgo, penso eu que é uma espécie de menina de tenros anos e extremamente formosa, que têm a seu cargo adornar, polir e tornar mais rica e sedutora muitas outras donzelas que são as demais ciências. De todas elas se deve servir e com todas elas se há-de autorizar. mas esta menina não entende ser empurrada, nem trazida para a rua, nem que a apregoem pelas esquinas das praças e recantos dos palácios. Saiu duma alquimia tão delicada que quem a souber tratar poderá convertê-la em oiro puríssimo. Cumpre recatá-la, não a deixando derramar-se em torpes sátiras e desconchavados sonetos. De maneira alguma deverá ser objecto de comércio, salvo o poema heróico, a tragédia digna, a comédia alegre e que desenfastia. Não se deixe manusear por truões nem tão-pouco pelo vulgo ignaro, incapaz de reconhecer e apreciar os seus tesouros. E não julgueis que dê o nome de vulgo ignaro somente à gente humilde e sem princípios. Os iletrados, figurem os seus nomes bem embora no brasonário, fazem parte deste número. Aquele que se entregar à poesia com os resguardos todos, tornar-se-á célebre e o seu nome proferido com respeito em nações civilizadas. (...)"
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2015-09-10
D. Quixote de la Mancha (vol.II, p.132-133)
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