Marguerite Yourcenar L'Oeuvre au Noir (1968) (trad. António Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes)
"(...) Já percorri grande parte desta bola onde vivemos; estudei o ponto de fusão dos metais e a germinação das plantas; observei os astros e examinei o interior dos corpos. Sou capaz de extrair, deste tição que aqui está, a noção de peso, e destas chamas a noção de calor. Sei que não sei aquilo que não sei; invejo aqueles que venham a saber mais, mas sei que, tal como eu, terão que medir, pesar, deduzir e desconfiar das deduções alcançadas, distinguir o que há de falso no verdadeiro e levar em conta a eterna mistura da verdade e da falsidade. Nunca me agarrei firmemente a uma ideia, por temer a confusão em que, sem ela, poderia vir a cair. Nunca temperei um facto verdadeiro com o molho da mentira, para me facilitar a digestão. Nunca deformei os pontos de vista do adversário para mais facilmente ter razão, (...). Ou talvez sim: surpreendi-me nesse acto, mas sempre me repreendi como se repreende um criado desonesto, confiando apenas na promessa que a mim mesmo fiz de vir a proceder melhor. Sonhei com os meus sonhos; não considero tudo isto mais do que sonhos. Abstive-me sempre de fazer da verdade um ídolo, preferindo designá-la pelo nome mais humilde de exactidão. Os triunfos e os perigos que acumulei não são aquilo que se pensa: existem outras glórias para além da glória e outras chamas para além das da fogueira. Consegui, praticamente, desafiar as palavras. Hei-de morrer um pouco menos estúpido do que nasci."
|
2015-02-22
A Obra ao Negro (p.99)
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário